terça-feira, 3 de março de 2009

Uma homenagem


Um homem de muitas qualidades. E, se havia uma a destacar, era a gratidão. A ideia da festa não era de hoje. Vinha planejando há tempos. Planejando não. Tinha vontade de fazer uma homenagem, mas jamais havia elaborado rascunho do que seria a celebração. Achou que aos 50 anos de idade era o momento. A adolescência já havia se despedido há bom tempo, mas ainda possuía músculos para aproveitar a vida, reflexos rápidos e barriga com circunferência que não atrapalhava o futebol do condomínio. Vá lá. Ainda que para ser, no máximo, zagueiro.


Pensou com a esposa. Churrasco ou lanche da tarde? Café-da-manhã caprichado ou jantar à luz de velas? Seria churrasco. Organizou a festa no papel, em dois dias. Na semana seguinte, foi ao supermercado. Comprou pratos de plástico, copos descartáveis, toalha de mesa colorida, carvão, enfeites de salão, balões de gás, plantas decorativas. Todo mundo gosta de churrasco. Agradar convidados de lugares tão diferentes exige escolhas das mais populares e democráticas. Nada de muito específico.


Os convivas teriam paciência para discurso? Não era homem das palavras, tinha vergonha de falar em público. Quando pequeno ganhou o apelido de Maçã do Amor, depois que a professora da escola mandou apresentar um trabalho na frente da turma. Bochechas coradas. Mas se não fizesse discurso ficaria feio. Era uma festa de agradecimento. Mais do que anfitrião, o homem precisaria abrir o coração aos presentes. As pessoas gostam de ouvir palavras doces, ter o coração massageado. Não poderia homenagear sem nada dizer.


Mais uma vez recorreu à esposa. Ela escreveu cinco linhas, com alguma frieza nas expressões escolhidas. Não alcançou o ponto que ele gostaria. Era um casal diferente do que se pode imaginar, com relação às características sentimentais de homem e mulher. Ela mais rude, temperamental. Ele coração de manteiga. Não gostou do que a esposa escreveu. Ela tentou mais uma vez, com texto mais longo. Não deu certo. Tentou de novo. Na sétima vez, a mulher se irritou. Rasgou as folhas de caderno nas quais escrevia, saiu do quarto e bateu a porta.


Ele respondeu com um palavrão baixinho, como se estivesse torcendo para a esposa não ouvir. Os olhos lacrimejaram. Era a emoção brotando, o que faltava para a inspiração transbordar-lhe pelos braços, inundar a escrivaninha. O discurso estava pronto. Foi até a cozinha, anunciou a vitória à cônjuge e fizeram as pazes, seladas com um rápido beijo na boca. O barulho do beijo lembrou o ruído provocado pelo ato de rasgar uma folha de papel. Ele até percebeu isso, só não falou nada porque a conciliação já estava selada. Era de evitar rancores. O que não evitava era a lembrança dos bons gestos.


Um homem de muitas qualidades. Houve época em que brigava muito com a esposa. Hoje nunca. Ou melhor, quase nunca. Ela não pediu o divórcio justamente porque sabia das qualidades do marido. Entre todas, destacava-se a gratidão. Como enviar os convites aos homenageados da festa? Durante todo o tempo, o homem já havia pensado em tudo. Ao longo dos anos, ele separou uma agenda com os contatos das pessoas.


Algumas eram pobres, não tinham e-mail. Outras muito pobres, mal tinham CEP. Algumas eram ricas, poderiam estar de férias na casa de praia. Outras eram muito ricas, talvez estivessem passeando de iate. No entanto, por incrível que pareça, o anfitrião conseguiu contatar todo mundo. Eram mais de quatrocentos convidados. O espaço em casa era pequeno. Ele afastou o sofá, reordenou o posicionamento das poltronas, encostou a mesa de jantar na parede e derrubou a cerca que separava o seu jardim da propriedade do vizinho, após pedir permissão.


Ficou sem dormir algumas noites enquanto pensava nas atrações da festa. Contratou o primo, que tocava cavaquinho em grupo de pagode. Também chamou sanfoneiro, para quem preferisse forró. Um conjunto de harpa e violino atenderia a ouvidos mais sofisticados, ao mesmo tempo em que um sósia de Roberto Carlos cantaria sucessos da Jovem Guarda. Em uma das madrugadas que pegou no sono, despertou com a campainha. Era o dia da celebração. (continua na próxima semana)

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Taty Stahl é paulista, artista plástica, trabalha com cerâmica, fotografia e, até o momento, a leitora que mais contribuiu com fotos para o Olha na Janela. A imagem do post anterior foi registrada por ela no bairro de Neve Tzedek, em Tel Aviv, Israel. A região foi revitalizada a partir dos anos 1980, recuperando antigo prestígio. A arquitetura local é um dos destaques, aliada a restaurantes, galerias de arte e lojas de design. A autora do clique explica a “tara” pelo tema:

– É possível analisar diversas coisas pela janela, assim como pelos varais. Dá para saber muito sobre os donos. Você pode ver o mundo do outro, ou o seu próprio. Depende do lado de onde olha. Em geral, minhas fotos mostram o mundo dos outros. Não sou tão autobiográfica.

O sobrenome de tradição na fotografia não tem a ver com Augusto Stahl, fotógrafo alemão que desembarcou no Brasil no século XIX:

– Perdi a oportunidade de ter alguém famoso na família, brinca.

3 comentários:

Anônimo disse...

To curiosa pra continuação....
Q foto mais MARAVILHOSA!!!! Adorei!!
Bjao

Anônimo disse...

Queridão!
Seu texto é maravilhoso.
Por que não se aventura no mundo dos roteiros de cinema? o mercado precisa de pessoas talentosas... nós recebemos cada roteiro aqui... Você dá um banho contando estórias. Estou curiosa pelo resto. Você vai colocar o discurso dele?

Beijocas

Anônimo disse...

oi Eduardo! Adoro seus textos... Sempre vejo q vc trata as palavras com carinho e as usa como um pintor, suas tintas. Parabéns... Engulo até minha pequena inveja! rs Abs Mônica Alvarenga