quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Preguiça de língua


Já passava de certa idade o professor quando foi acometido por um mal que a escola inteira começou a chamar preguiça de língua. Não era falta de conhecimento. A diretora se retratava aos pais dos estudantes, que vez ou outra estranhavam. Frequentou cursos até no estrangeiro, quando adolescente, mas agora anda a falar como se quisesse economizar português.

Começou pelo plural. No outro dia, um aluno jura que o ouviu conversando com o dono de uma barraca, na feira da esquina. Bom dia, Ernestino. Me dá dois mamão dos grande. Faz dois por três real? Era caso sério, o do professor. Preguiça de língua. Sempre uma forma de evitar letra ou enxotar palavra. Olha que era pós-doutor. Seriam desavenças com o alfabeto? Pura desfeita com o dicionário?

Deu a reduzir nomes próprios a coisa. Estive falando ontem com o Seu Coisa. Quem?
O Seu Coisa. Irmão de fulano, o Coisa. Se o interlocutor do professor não fingisse ter entendido quem era o Seu Coisa, o mestre era capaz até de responder com ofensa. O Seu Coisa precisa aprender uma lição. Ele agora se acha o tal. Se acha o quê? O tal, repetia com paciência didática. O tal.

Outra mania era substituir todos os números por letras. Não havia ocasião em que o professor especificasse quantidade sem usar as letras x, y ou z. Escolhia qualquer consoante ou vogal, aleatoriamente. Querido, já te expliquei n vezes, por a mais b, que você não deve interromper a minha explicação no meio. Guarde suas y dúvidas, espere eu terminar o raciocínio e então levante a mão para perguntar.

O mestre não se dava conta de que estava com preguiça de língua, talvez porque sua fluência em diversas línguas deixasse o ouvido surdo para as próprias palavras. Pois bem, era dotado de prática no manejo de sete idiomas. Além, claro, do mais fantástico. Sabia falar português ao contrário.

O avô lhe dera aulas de português ao contrário. O segredo para desenrolar a pronúncia perfeita é conversar virando cambalhotas, e segurar o ímpeto de abertura das narinas caso vislumbre o menor sinal de vontade de espirrar. Dessa forma, o português flui ao contrário, letra por letra, deslizando garganta afora.

Quase todo dia, os alunos pediam uma demonstração de prática da fala do português ao contrário. E lá ia o professor pedindo ajuda para afastar as cadeiras da sala e virar cambalhotas. E lá ia pegando uma pena que trazia sempre no bolso, para despertar o espirro.

“Seu Coisa” virava “Asioc Ues”. “Escola” virava “Alocse”. Ninguém entendia nada, contudo, era divertido. A cada frase falada rapidamente, os estudantes retribuíam a hábil tarefa com salvas de palmas. O homem girava no chão, abanava o queixo com a pena e segurava o nariz com o objetivo de prender o impulso do espirro.

Certa vez, o professor não suportou a força do espirro e, em pleno ato de cambalhotar, pronunciou cinco palavrões impublicáveis, com as letras na ordem certa, que ecoaram na sala da diretora. Por pouco não acabou demitido. Parou de realizar as performances. A fisionomia dos alunos se tornou mais triste depois da decisão docente, mas as aulas continuaram.

O francês aprendi nas cartas de vinho. O italiano nos cardápios dos restaurantes de massa. O russo nos rótulos das garrafas de vodka. O inglês nos discos dos Beatles. O espanhol nos discursos de Castro. O grego nos diálogos de Platão. Pela fonte de cada lição, dava para conhecer os gostos e as linhas de estudo do professor.

Tão inteligente e culto, porém, agora, com preguiça de língua. Qualquer dia desses abrevia a linguagem toda, invalida por completo o sistema gramatical. Um desobediente? Um revolucionário? Um irresponsável? Um aventureiro? Ou um preguiçoso da fala correta?

Quando soube do problema, o inspetor da escola levou um susto. Mesmo porque o professor passou a falar poblema, pobrema, probrema, ploblema, plobrema, pmoblera, prlmoabe, tudo, menos problema. Esse foi um estágio mais avançado do mal que acometeu o mestre.

Depois, ele não conseguiu falar mais palavra alguma, pois embaralhava letras como se fosse distribuí-las na sequência, em um jogo de buraco. Mas nunca distribuía. Travava os fonemas nos dentes, prendia nas mãos trincas e canastras.

Um médico falou em abstinência pela falta de prática do português ao contrário. Outro cogitou overdose de informação jornalística, que teria mexido com alguma área do cérebro. Eu mantenho a minha opinião. Preguiça de língua.

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A foto do post anterior é de uma casa na rua Senador Dantas, uma das vias que ligam o Largo da Carioca à Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro.

3 comentários:

Esther Meireles disse...

A preguiça de língua também tem outras formas de atacar... Deve ser um vírus mutante! Tem aqueles que adoram um "enfim" para substituir um monte de coisas que eles teriam que dizer, mas simplesmente estão com preguiça. Também há outros que diminuem o volume no final da frase... já reparou?! Começam muito bem, às vezes até alto demais, e lá pelo meio da frase começa a bater uma preguiiiiça... e o volume vai baixando, baixando... até ficar ininteligível!

Eduardo Shor disse...

É verdade. Eu nem tinha me lembrado dessas. Esses casos que você citou são muito comuns, a gente vê quase que diariamente.

Anônimo disse...

Shor,
os seus textos são muito comoventes, além de absolutamente geniais. Um dia alguém vai descobrir sua criatividade fora do comum e vai lhe abrir o espaço que você merece em meio ao marasmo de nossa intelectualidade.
Grande e fraterno abraço