sexta-feira, 20 de março de 2009

Fixação


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes com seu nutricionista, Gregor Samsa deu por si na cama sob vontade incontrolável de comer folhas crocantes de alface. Era uma segunda-feira de março, desses anos em que o primeiro feriado prolongado cai na última semana de dezembro. Pela sétima vez, escolheu a opção soneca, no alarme do celular. Voltou a dormir. Sonhou que se preparava para ir ao escritório. Banho, café-da-manhã, nó na gravata, estação de metrô. Barulho do alarme. O fato é que continuava de pijamas.

Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal. O problema foi a noite anterior. Futebol no clube às seis, sauna às oito e sexo acrobático às dez. “A esposa, vinte anos mais jovem, precisaria entender”, refletiu Gregor. Ele já era um senhor (tudo bem, não era, mas se considerava), não tinha a mesma força de antes. Seria necessário distribuir melhor as atividades ao longo do mês, a fim de evitar o cansaço. O alarme ainda tocou mais uma vez, arrancando-lhe as tripas pelos ouvidos.

Com a cabeça enterrada no travesseiro, tateou a mesa de cabeceira em completa desordem, na busca pelo celular. Derrubou estrondosamente a pequena luminária branca. O tempero. Alface ao molho ceaser, de mostarda e mel, ao alho e óleo, com tomates ou palmito, azeitonas, queijo parmesão ralado. O cardápio variado girava em sua cabeça, com as opções descritas em tcheco, sem tradução simultânea. “Que me aconteceu?”, pensou. E resmungou depois a um garçom imaginário: “Alface crocante, límpido e puro”. Foi terminar a frase que a gravata borboleta do funcionário saiu voando e se transformou em uma lagarta marrom.

Encontrou o celular, pressionou o botão soneca. Não, não era o celular. Era o controle remoto da TV. Continuou a tatear a mesa de seu quarto vulgar. Encontrou o celular, pressionou o botão soneca. Não, não era o celular. Era o controle remoto do ar-condicionado. Sem querer, reduziu a temperatura do aparelho a níveis siberianos. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se sob os lençóis finos, congeladas. Só desistiu quando começou a sentir no braço uma ligeira dor entorpecida. Dormira em cima do braço direito. Eram câimbras.

Esperou intermináveis cinco minutos até que recuperasse o braço. O despertador parou de tocar, automaticamente. Pensou, “que trabalho tão cansativo escolhi. Viajar, dia sim, dia não. Preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares. Diabos levem tudo isto!” Sentiu um leve roncar na barriga. Era a necessidade de alface crocante. Estava cada vez mais insuportável. Pães recheados com doce, bolo de chocolate, pêssegos em calda, sorvete de morango, nada seria capaz de satisfazê-lo.

Voltou a dormir. Sonhou que Freud era o inventor do pênis e estava com inveja da folha crocante de alface que possuía no prato, servido por um garçom sem gravata. Sonhou com candidatos a rei Momo queimando alfaces em praça pública. Sonhou com Berlim dividida. A parte oriental, que partilhava folhas gigantes de alface, sem deixar que seus habitantes conhecessem tomates. A parte ocidental, que atirava tomates sobre o antigo muro, na direção do lado oriental. Sonhou com uma folha de alface retirante, que deixou o pomar onde vivia para tentar a vida no hortifruti. Sonhou com o governo do Irã comunicando oficialmente que alfaces crocantes jamais existiram.

Na Venezuela, o presidente estatizou todas as folhas crocantes de alface. Nos ônibus de Nova York, as folhas de alface negras puderam sentar no mesmo banco de ônibus que as folhas de alface brancas. Sobrou até mesmo para os brócolis, que acabaram confundidos com alfaces do movimento black power, graças ao arrepio no penteado.

O alarme uma vez mais rompeu o silêncio do quarto e quase o derrubou da cama. Folha crocante de alface, folha crocante de alface, folha crocante de alface, eram quatro palavras a martelar sua cabeça, ao ritmo agudo de um barulho telefônico do despertador do celular. Precisava de alface, nem que apenas uma folha crocante. Sentia-se um refugiado da Eritréia em busca de comida. Um psicopata fixado em alface. Não era. Era vontade incontrolável de ser humano.

Serei sempre o que esperou que lhe oferecessem alface ao pé de uma horta sem verduras? Foi a pergunta que fez a seu analista, dias depois. Antes, naquele momento em seu próprio quarto, apesar da leve dor de cabeça, Gregor sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.

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A foto do post anterior é de um edifício na Lapa, no Rio de Janeiro. Está localizado na rua Mem de Sá, próximo aos famosos Arcos e à sala Cecília Meireles, palco de apresentações de música. A foto foi tirada em outubro de 2008.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Uma homenagem – parte 2


(continuação do post anterior)
Uma homenagem a todos aqueles que em certo momento o homem encontrou pelas ruas ou estradas, e, perdido, perguntou pelas direções. Gente de uma era sem GPS. Ou, ainda, membros anônimos da rede internacional solidária de dados, disposta a informar a estranhos o caminho a seguir, em busca do destino desejado. Encosta o automóvel e baixa o vidro:

– Por favor, onde fica a rua Anatólio Maracoálias?

– Tem certeza de que é rua? Não Avenida?

– É rua mesmo, me disseram que é rua.

– Tem referência?

– Perto do hospital São Roque.

– Ah, uma rua escondidinha. Segue toda a vida, depois dobra a terceira à direita, quando vir uma placa da Saul Móveis.

O homem dizia obrigado e, então, dava uma sequencia de três buzinadas. Sempre quis agradecer mais formalmente a essas pessoas, embora o que faltasse mesmo era oportunidade. Não faltava mais. Alguns trouxeram presentes. Bússolas, guias quatro-rodas, aparelhos de GPS, caixas de bombom, cera para lustrar a lataria do carro, caixas de sapato. Não era nada combinado, porém, a maioria dos itens se tratava de algo ligado a caminho ou meio de transporte.

O anfitrião reconheceu todos os que compareceram. Quem ele não reconheceu, fingiu bem ter visto aquela fisionomia em qualquer canto da memória.

Estava ali o jornaleiro que indicou certa vez onde ficava a Avenida Rio Branco, quando o dono da casa ainda não se virava bem no centro da cidade. A funcionária da companhia aérea que lhe deu as coordenadas para o portão do voo Rio de Janeiro-Recife. Ele estava atrasado, quase despacha as malas sem alcançar a área de embarque a tempo. O taxista portenho que recomendou um bom e barato restaurante de Buenos Aires. Naquela tarde, comemorara um gol do River Plate em plena visita ao estádio do Boca Juniors. Por pouco fica sem dentes para o jantar.

A esposa estava contente com a alegria do marido. Por cada roda de conversa que passava, todos diziam “Um homem de qualidades. Se há uma a destacar, é a gratidão”. A mulher agradecia, querendo demonstrar ser tão grata quanto. Provar que o modelo vinha de família. Oferecia mais um bolo, mais um salgado, mais uma caloria. Um refrigerante diet.

O banheiro masculino você precisa descer três lances, fica ao lado do filtro de água. A sala do capitão é a segunda à direita. Anda mais três blocos e você chega ao shopping. O escritório é perto da padaria. Olha, daqui até lá deve dar uns quinze minutinhos. Os convidados relembravam o modo como conheceram o homem. Você vai ter que entrar na próxima à direita. Anda mais cinco quadras e vai ver um prédio verde. Faz a volta porque a rua não dá mão, entra na segunda à esquerda. É quase em frente ao canal. Eram histórias e mais histórias da cartografia amadora na ponta da língua.

O dono da casa se divertia. Combinou de enviar o currículo para um advogado que lhe informara onde pegava a senha de atendimento, na fila do banco. Prometeu adicionar um militar aposentado no Orkut e doar duzentos reais para a obra de caridade de um pastor. O último a chegar à festa, um farmacêutico. Foi também o que disse a última frase:

– E aí, afinal, encontrou o cabaré no mês passado?

A esposa do anfitrião estava próxima. A pergunta alcançou os ouvidos dela como um tiro à queima-roupa. Ouviu-se um grito agudo e alto. O casal correu para o quarto com a mulher aos berros. Ela ignorou os apelos do marido, aprontou as malas, perguntou a alguém por onde pegava um caminho sem volta e jurou que não retornava mais ao lar. O homem tentou demovê-la da ideia até o fim, tentando se explicar. Alguns convidados procuraram ajudá-lo. O papel com o discurso caiu.

– Seu ingrato! Ingrato! – a esposa retrucou, antes de partir.

Ela era tudo para o marido. Ele, estatelado no chão, a chorar, estava perdido na vida.

Memorial Vivo

Dizem que o povo brasileiro não tem memória. Se não tem mesmo, agora a internet vai dar uma ajuda ainda maior para quem deseja lembrar as pessoas que já se foram. No site Memorial Vivo, o internauta pode criar o perfil de gente que deixou saudades, adicionando fotos, filmes, trilhas sonoras e comentários. Há espaço também para ídolos do esporte, da música, da política, entre outras áreas.

“O Memorial Vivo é o lugar certo para reunir grandes recordações; histórias de pessoas especiais que, apesar de distantes agora, preencheram a vida de muitos com seu jeito especial de ser. A página fala de vida, sucesso, vitórias, caminhos e felicidade”, destaca a assessoria de imprensa do site.

Mais do que um passatempo virtual, o aumento do número de perfis cadastrados pode transformar o Memorial Vivo em um grande acervo de informações a respeito de figuras ilustres e anônimas que não estão mais entre nós. O endereço é http://www.memorialvivo.com.br/.

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A foto do post anterior foi tirada pela leitora Débora Grinspun, em uma ilha nas proximidades da Ilha do Cardoso, litoral sul de São Paulo. A janela compõe resquícios de uma casa, cuja maior parte da estrutura, em dezembro de 2007, já estava tomada pelo mar. Hoje, é quase certo que a janela do post anterior seja apenas uma fotografia na parede cibernética deste blog.

terça-feira, 3 de março de 2009

Uma homenagem


Um homem de muitas qualidades. E, se havia uma a destacar, era a gratidão. A ideia da festa não era de hoje. Vinha planejando há tempos. Planejando não. Tinha vontade de fazer uma homenagem, mas jamais havia elaborado rascunho do que seria a celebração. Achou que aos 50 anos de idade era o momento. A adolescência já havia se despedido há bom tempo, mas ainda possuía músculos para aproveitar a vida, reflexos rápidos e barriga com circunferência que não atrapalhava o futebol do condomínio. Vá lá. Ainda que para ser, no máximo, zagueiro.


Pensou com a esposa. Churrasco ou lanche da tarde? Café-da-manhã caprichado ou jantar à luz de velas? Seria churrasco. Organizou a festa no papel, em dois dias. Na semana seguinte, foi ao supermercado. Comprou pratos de plástico, copos descartáveis, toalha de mesa colorida, carvão, enfeites de salão, balões de gás, plantas decorativas. Todo mundo gosta de churrasco. Agradar convidados de lugares tão diferentes exige escolhas das mais populares e democráticas. Nada de muito específico.


Os convivas teriam paciência para discurso? Não era homem das palavras, tinha vergonha de falar em público. Quando pequeno ganhou o apelido de Maçã do Amor, depois que a professora da escola mandou apresentar um trabalho na frente da turma. Bochechas coradas. Mas se não fizesse discurso ficaria feio. Era uma festa de agradecimento. Mais do que anfitrião, o homem precisaria abrir o coração aos presentes. As pessoas gostam de ouvir palavras doces, ter o coração massageado. Não poderia homenagear sem nada dizer.


Mais uma vez recorreu à esposa. Ela escreveu cinco linhas, com alguma frieza nas expressões escolhidas. Não alcançou o ponto que ele gostaria. Era um casal diferente do que se pode imaginar, com relação às características sentimentais de homem e mulher. Ela mais rude, temperamental. Ele coração de manteiga. Não gostou do que a esposa escreveu. Ela tentou mais uma vez, com texto mais longo. Não deu certo. Tentou de novo. Na sétima vez, a mulher se irritou. Rasgou as folhas de caderno nas quais escrevia, saiu do quarto e bateu a porta.


Ele respondeu com um palavrão baixinho, como se estivesse torcendo para a esposa não ouvir. Os olhos lacrimejaram. Era a emoção brotando, o que faltava para a inspiração transbordar-lhe pelos braços, inundar a escrivaninha. O discurso estava pronto. Foi até a cozinha, anunciou a vitória à cônjuge e fizeram as pazes, seladas com um rápido beijo na boca. O barulho do beijo lembrou o ruído provocado pelo ato de rasgar uma folha de papel. Ele até percebeu isso, só não falou nada porque a conciliação já estava selada. Era de evitar rancores. O que não evitava era a lembrança dos bons gestos.


Um homem de muitas qualidades. Houve época em que brigava muito com a esposa. Hoje nunca. Ou melhor, quase nunca. Ela não pediu o divórcio justamente porque sabia das qualidades do marido. Entre todas, destacava-se a gratidão. Como enviar os convites aos homenageados da festa? Durante todo o tempo, o homem já havia pensado em tudo. Ao longo dos anos, ele separou uma agenda com os contatos das pessoas.


Algumas eram pobres, não tinham e-mail. Outras muito pobres, mal tinham CEP. Algumas eram ricas, poderiam estar de férias na casa de praia. Outras eram muito ricas, talvez estivessem passeando de iate. No entanto, por incrível que pareça, o anfitrião conseguiu contatar todo mundo. Eram mais de quatrocentos convidados. O espaço em casa era pequeno. Ele afastou o sofá, reordenou o posicionamento das poltronas, encostou a mesa de jantar na parede e derrubou a cerca que separava o seu jardim da propriedade do vizinho, após pedir permissão.


Ficou sem dormir algumas noites enquanto pensava nas atrações da festa. Contratou o primo, que tocava cavaquinho em grupo de pagode. Também chamou sanfoneiro, para quem preferisse forró. Um conjunto de harpa e violino atenderia a ouvidos mais sofisticados, ao mesmo tempo em que um sósia de Roberto Carlos cantaria sucessos da Jovem Guarda. Em uma das madrugadas que pegou no sono, despertou com a campainha. Era o dia da celebração. (continua na próxima semana)

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Taty Stahl é paulista, artista plástica, trabalha com cerâmica, fotografia e, até o momento, a leitora que mais contribuiu com fotos para o Olha na Janela. A imagem do post anterior foi registrada por ela no bairro de Neve Tzedek, em Tel Aviv, Israel. A região foi revitalizada a partir dos anos 1980, recuperando antigo prestígio. A arquitetura local é um dos destaques, aliada a restaurantes, galerias de arte e lojas de design. A autora do clique explica a “tara” pelo tema:

– É possível analisar diversas coisas pela janela, assim como pelos varais. Dá para saber muito sobre os donos. Você pode ver o mundo do outro, ou o seu próprio. Depende do lado de onde olha. Em geral, minhas fotos mostram o mundo dos outros. Não sou tão autobiográfica.

O sobrenome de tradição na fotografia não tem a ver com Augusto Stahl, fotógrafo alemão que desembarcou no Brasil no século XIX:

– Perdi a oportunidade de ter alguém famoso na família, brinca.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Preguiça de língua


Já passava de certa idade o professor quando foi acometido por um mal que a escola inteira começou a chamar preguiça de língua. Não era falta de conhecimento. A diretora se retratava aos pais dos estudantes, que vez ou outra estranhavam. Frequentou cursos até no estrangeiro, quando adolescente, mas agora anda a falar como se quisesse economizar português.

Começou pelo plural. No outro dia, um aluno jura que o ouviu conversando com o dono de uma barraca, na feira da esquina. Bom dia, Ernestino. Me dá dois mamão dos grande. Faz dois por três real? Era caso sério, o do professor. Preguiça de língua. Sempre uma forma de evitar letra ou enxotar palavra. Olha que era pós-doutor. Seriam desavenças com o alfabeto? Pura desfeita com o dicionário?

Deu a reduzir nomes próprios a coisa. Estive falando ontem com o Seu Coisa. Quem?
O Seu Coisa. Irmão de fulano, o Coisa. Se o interlocutor do professor não fingisse ter entendido quem era o Seu Coisa, o mestre era capaz até de responder com ofensa. O Seu Coisa precisa aprender uma lição. Ele agora se acha o tal. Se acha o quê? O tal, repetia com paciência didática. O tal.

Outra mania era substituir todos os números por letras. Não havia ocasião em que o professor especificasse quantidade sem usar as letras x, y ou z. Escolhia qualquer consoante ou vogal, aleatoriamente. Querido, já te expliquei n vezes, por a mais b, que você não deve interromper a minha explicação no meio. Guarde suas y dúvidas, espere eu terminar o raciocínio e então levante a mão para perguntar.

O mestre não se dava conta de que estava com preguiça de língua, talvez porque sua fluência em diversas línguas deixasse o ouvido surdo para as próprias palavras. Pois bem, era dotado de prática no manejo de sete idiomas. Além, claro, do mais fantástico. Sabia falar português ao contrário.

O avô lhe dera aulas de português ao contrário. O segredo para desenrolar a pronúncia perfeita é conversar virando cambalhotas, e segurar o ímpeto de abertura das narinas caso vislumbre o menor sinal de vontade de espirrar. Dessa forma, o português flui ao contrário, letra por letra, deslizando garganta afora.

Quase todo dia, os alunos pediam uma demonstração de prática da fala do português ao contrário. E lá ia o professor pedindo ajuda para afastar as cadeiras da sala e virar cambalhotas. E lá ia pegando uma pena que trazia sempre no bolso, para despertar o espirro.

“Seu Coisa” virava “Asioc Ues”. “Escola” virava “Alocse”. Ninguém entendia nada, contudo, era divertido. A cada frase falada rapidamente, os estudantes retribuíam a hábil tarefa com salvas de palmas. O homem girava no chão, abanava o queixo com a pena e segurava o nariz com o objetivo de prender o impulso do espirro.

Certa vez, o professor não suportou a força do espirro e, em pleno ato de cambalhotar, pronunciou cinco palavrões impublicáveis, com as letras na ordem certa, que ecoaram na sala da diretora. Por pouco não acabou demitido. Parou de realizar as performances. A fisionomia dos alunos se tornou mais triste depois da decisão docente, mas as aulas continuaram.

O francês aprendi nas cartas de vinho. O italiano nos cardápios dos restaurantes de massa. O russo nos rótulos das garrafas de vodka. O inglês nos discos dos Beatles. O espanhol nos discursos de Castro. O grego nos diálogos de Platão. Pela fonte de cada lição, dava para conhecer os gostos e as linhas de estudo do professor.

Tão inteligente e culto, porém, agora, com preguiça de língua. Qualquer dia desses abrevia a linguagem toda, invalida por completo o sistema gramatical. Um desobediente? Um revolucionário? Um irresponsável? Um aventureiro? Ou um preguiçoso da fala correta?

Quando soube do problema, o inspetor da escola levou um susto. Mesmo porque o professor passou a falar poblema, pobrema, probrema, ploblema, plobrema, pmoblera, prlmoabe, tudo, menos problema. Esse foi um estágio mais avançado do mal que acometeu o mestre.

Depois, ele não conseguiu falar mais palavra alguma, pois embaralhava letras como se fosse distribuí-las na sequência, em um jogo de buraco. Mas nunca distribuía. Travava os fonemas nos dentes, prendia nas mãos trincas e canastras.

Um médico falou em abstinência pela falta de prática do português ao contrário. Outro cogitou overdose de informação jornalística, que teria mexido com alguma área do cérebro. Eu mantenho a minha opinião. Preguiça de língua.

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A foto do post anterior é de uma casa na rua Senador Dantas, uma das vias que ligam o Largo da Carioca à Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Os dois homens


As costas da mulher amparadas no balcão do bar, os cotovelos para trás, fixos na superfície do balcão, e o copo de bebida alcoólica por perto. Cigarro entre os dedos. Só fuma quando bebe. Suas risadas morenas se misturam à meia luz do lugar, ao colorido dos quadros com propaganda de marcas de bebida, à imagem da TV de plasma ao fundo, aos detalhes dourados da decoração e da cerveja.

O bar é Ipanema. Meia luz. Cheiro ora de vodka e limão, com baforadas de tabaco; ora de frutas vermelhas, com raspas de hortelã. O maior desejo dela é conversar com dois homens ao mesmo tempo. Cobrir-se no calor das palavras de dois. Do dobro. Transbordar o que é suficiente. Enrolar-se no ímpeto daqueles estranhos que a procuram para compartilhar uma noite, antes de devolvê-la a seus próprios sonhos. Sonhos que, no fundo, são para uma vida toda, e não apenas para uma noite.

Passava das cinco da manhã. O grupo das amigas tinha ido embora. Ficara ela e os dois desconhecidos. Os homens conquistam sua atenção, sem se reduzirem diante do que é a sua musa incondicional daqueles últimos trinta minutos. Não se curvam, não fazem súplicas, não se ajoelham, não juram amor para sempre. Mas seduzem. Ela sente que, se não demonstrar interesse, pode ser abandonada no balcão. Pode ter a beleza e os instintos renegados. Não gostaria de ser renegada. Nem por um acaso. Nem por uma noite.

Os dois homens estão hipnotizados pela mulher. Também não querem ser desprezados, embora saibam que um deles deverá abdicar da conquista em favor do outro. Abordaram-na ao mesmo momento. Porém, evitam atacar-se, com a nobreza de dois lutadores de esgrima, que trincam espadas, mas preservam a honra do adversário.

As palavras de um deles se enroscam na orelha dela, que retoca a maquiagem no reflexo do cinzeiro de metal. As idéias do outro umedecem seu pescoço e os ombros, que o recorte do vestido deixa à mostra. À mulher tampouco interessa saber por que surgiram. Quer conversar com dois homens ao mesmo tempo. Basta.

Bebem. Os copos esvaziam como uma ampulheta. Quanto mais cerveja é consumida, mais próximos estão do tempo que os levará embora dali. Os clientes todos já deixaram o lugar. O DJ desliga a música, a luz ganha mais intensidade. Os três olham ao redor, a luz do sol entra por uma das janelas. Ao fundo do salão, o cozinheiro está sem camisa. Barriga protuberante e peito cabeludo. Troca o uniforme branco pela blusa com a qual voltará para casa.

O faxineiro varre a pista de dança vazia, separando latas de refrigerante, que lhe renderão alguns trocados na reciclagem. Um dos homens que conversava com a mulher tem boca de alumínio. Logo se vê que também tem olhos de alumínio, joelhos de alumínio, boca, orelhas, coração, nariz de alumínio. O faxineiro separa a estrutura, guarda as peças dentro de uma enorme caixa de papelão. Certamente ganhará bom dinheiro na hora de reciclar.

O outro homem não é de alumínio. O garçon o levanta com certo esforço e o empilha em posição de sentado, de cabeça para baixo, sobre uma das mesas. Fica junto às cadeiras do bar, também empilhadas de cabeça para baixo. O celular da mulher toca. É o táxi, esperando na porta.

Carta e Crônica

O site Olha na Janela inaugura hoje uma seção com sugestões de blogs para seus leitores, na coluna à direita da página. O primeiro deles é o Carta e Crônica, do jornalista carioca Henry Galsky. Correspondente da rádio CBN na guerra entre Israel e Líbano, em 2006, Galsky publica textos sobre os assuntos mais quentes do cenário internacional.

Os temas são abordados de maneira leve e esclarecedora. Perfeito para quem deseja compreender os fatos com o detalhamento que um jornal diário muitas vezes não proporciona, na maioria dos casos, por falta de espaço. O jornalista escreve com habilidade, oferecendo ao leitor conhecimento e base para debates nas rodas fora do ambiente cibernético.

Desde dezembro, o Carta e Crônica faz parte dos blogs oficiais do jornal O Tempo, de Minas Gerais. A prosperidade chinesa, as relações entre Índia e Paquistão, os conflitos no Oriente Médio, as expectativas com a chegada de Barack Obama ao poder. Confira tudo em http://cartaecronica.blogspot.com/.

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Janelas de um edifício na rua do Passeio, entre a Cinelândia e a Lapa, em frente aos jardins do Passeio Público.